quarta-feira, janeiro 10, 2007

Porto da Barra

O Porto da Barra é uma das praias mais pitorescas do mundo. Talvez só perca para a praia de Icaraí e adjacências, onde a grande bizarrice reside no fato de que não tem mar, e sim um grande lamaçal, onde as pessoas insistem em mergulhar. Aliás, esquisito mesmo é que elas acreditam que o líquido no qual estão chafurdando está liberado para banho.

Mas o Porto é um balneário limpo, águas plácidas e mornas, que servem de manjedoura para um pôr do sol arrebatador. Um cenário de tranqüilidade e paz que se opõe diametralmente à barbárie de sem-noçãozices que assisto toda vez que resolvo pôr meus pés em suas areias escaldantes. Em meio a milhares de turistas, ?periguetes? e ?putões? se misturam às crianças mais barulhentas de Salvador, vira-latas, bolas de futebol desgovernadas, vendedores de queijo coalho e de bronzeadores (suspeitos na mesma medida), mendigos, alguns ótimos negões (em sua maioria, capoeiristas) e várias pessoas que se amarram num sambalelê, como eu. Adoro. Abriu o sol, saio correndo de casa e me jogo lá, toda refestelada na minha canga linda, de motivos indianos. Canga esta que, invariavelmente, está sempre cheia de flocos de areia, jogados por um ou outro pé mais incauto.

Tava eu lá, deitadinha e tostante ao sol, enquanto ouvia minha musiquinha no meu radin de pilha. Alguém me interrompe. Era um negão. Bem, como todos sabem dos meus pobrema nas vista, eu achei que fosse um negão. Eu também não tenho lá muito senso de proporção, e ignorei o fato de que eu estava deitada, com o sol batendo em cheio na cara, e ele de pé, contra a luz. Enfim, negão. Óbvio. Fiquei contente. Óculos escuros, sunga vermelha, brilhando. Não, não eram os óculos ou a sunga vermelha que brilhavam. Era ele. Puro óleo de bronzear. Parecia que tinha se jogado em uma tina de óleo de bronzear. Inclusive, pude divisar meu próprio rosto refletido em seu tórax reluzente e bem torneado. Saradíssimo, me interessei e dei um peteleco no fone de ouvido, desobstruindo meu canal auditivo cujo funcionamento, também de conhecimento geral, é constantemente afetado por uma surdez galopante que teima em se manifestar nas piores horas. Ele disse algo que eu não compreendi, deixou a carteira ao meu lado e, sem esperar resposta, correu para o mar.

Alguns minutos depois, vejo o moçoilo retornando da água, com mais bossa que Helô Pinheiro. Brilhando. Naquele momento, seguindo as orientações de minha companheira de trabalho, dona Anne, tentei compará-lo com algum passante, para constatar a estatura. E percebi que ele, efetivamente, não era um negão. Tampouco nego médio. Sua altura parecia regular com a de um menino de uns 11 anos que jogava frescobol próximo à água, podendo ser enquadrado na categoria neguinho. Orei para Jeová. O pior estava por vir.

Ele perguntou se poderia se sentar ao meu lado. Pelo que me consta, a praia ainda é pública, mas nem tive tempo de responder, pois ele, acachapantemente, se sentou. Na minha canga.

Alguém pode procurar o verbete ?propriedade privada? no Google, por favor?

Começou a falar alguma coisa, que eu não prestei muita atenção, pois estava ocupada tentando puxar o pedaço da MINHA CANGA que estava debaixo de suas nádegas besuntadas. Foi quando ele disse que era cantor de um grupo de pagode. Opa. Perguntei onde ele tocava. Ele disse que ia tocar em uma das praças do Pelourinho, domingo à tarde. E arrematou, dizendo que me colocaria para dentro, tipo convidado VIP de evento patrocinado por celular. Pelo que me consta, a grande maioria dos shows que ocupam os palcos das praças do conjunto arquitetônico do Pelourinho, tombado pelo patrimônio histórico brasileiro, são gratuitos. Especialmente, domingo à tarde.

Percebendo que eu havia pressentido o caô, rapidamente mudou de assunto e de tom, decaindo para uma cantada barata ao começar a elogiar meu cabelo, que, naquele momento, estava completamente afro-étnico-black-power. Eu sei que eu estava lindíssima, mas não era motivo para pedir meu telefone. Eu quis chorar. Inventei um namorado fictício, mas ele não se deu por vencido. E, lambendo os beiços, soltou: ?Imagina esse cabelão todo na minha cama???. P.A.N.I.C. Compreendi que era chegada a hora de me retirar. Horário de pico faz mal pra pele.

Por uma pernada do destino, meses depois, no Porto, eis que reencontro o ruela. Quando o vi ao longe, enfiei a cabeça na areia. Não adiantou. Dessa vez a sunga era amarela. Um pouco gasta, um pouco velha. Já tinha dado de si, de mi, de fá e de sol há muito tempo. Inclusive, e imagino que fosse proposital, o cós da sunga estava tão abaixo da linha do bom tom que deixava entrever alguns pêlos pubianos do mancebo. Puro charme.

Mais bezuntado do que nunca, imaginei que, por conta de eventuais dificuldades financeiras, ele estivesse usando óleo de soja (ou de dendê) no lugar de bronzeador. Um agrádavel odor de peixe frito se esgueirou por minhas narinas. Enquanto eu reclamava comigo mesma por minha falta de habilidade para ser grosseira, ele se sentou. Ao meu lado. Ninjamente, consegui tirar minha canga do caminho. A primeira coisa que ele perguntou foi se eu ainda estava namorando. ?Noiva?. Mudou o rumo. O assunto agora era trabalho. Disse que não estava mais tocando. Perguntei se ele trabalhava. ?De vez em quando, mas, no momento, estou só malhando.? Bom emprego. Decidi não falar mais nada, e comecei a arrumar minhas coisas para levantar acampamento. Foi quando ele viu algum conhecido, levantou, pediu pra eu segurar seus óculos de R$ 4,50 e não voltou mais.

Feliz com a privacidade reconquistada, joguei os óculos na areia, bem longe, e de novo me estirei languidamente em minha canga de motivos indianos. O sol brilhava com força, e pensei na possibilidade de trocar os óculos dele por um picolé de mangaba. Ele voltou. Caralho. Enfiei o picolé de mangaba no ouvido, e recomecei a rearrumar minhas coisas para relevantar o acampamento. Mesmo assim, ele se sentou, e começou a falar de dinheiro, viagens e malhação. E aí veio a pérola.

- Ah, tá sabendo que eu vou fazer um filme?
- É mesmo?
- É. Pornô.
- .

Olhei para o sol, na esperança de que os raios UVA e UVB me cegassem e me ensurdecessem. Não rolou. Dada a notícia, ele ficou um tempo em silêncio, olhando para o nada, com cara de quem havia acabado de chupar um cajá. Refletindo, talvez. Joguei tudo dentro da bolsa, incluindo o palito do picolé e algumas pás de areia, apressadamente. Ele tentou continuar, dizendo que o filme ia ser na Suíça, mas eu cortei. Triunfantemente grossa. Me despedi, dizendo ?olha ali meu noivo!?, e fui sartando. Ele acreditou, mas não desistiu. Disse que ia me ligar, sendo que eu nunca dei meu telefone a ele. Respondi ?Liga mesmo!?, para não contrariar.

Ainda deu tempo de vê-lo indo embora, cumprimentando metade da praia, provavelmente, pessoas que ele não conhecia. Foi uma imagem singular ver, emoldurado pelo amarelo da sunga meio frouxa, aquele exótico cofrinho oleoso, brilhando sob sol de Salvador.

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

é porto da barra é um lugar onde se pode encontrar muitos personagem. mas vc tem como se livrar deles.

eu gosto do jeito que vc escreve
uda

6:30 PM, janeiro 14, 2007  
Anonymous Anônimo said...

GARGALHADAAASSSS!!!!!!

Lulu, por favor, escreve um livro!!! O Jô não vai querer te deixar ir embora do programa dele nunca mais!

1:08 AM, janeiro 19, 2007  
Blogger Unknown said...

Lulu,

A-DO-REI!!!!
Quantas tiradas maravilhosas! Vc escreve bem, piriguete.

Bjs, bjs

9:14 AM, fevereiro 21, 2008  

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