terça-feira, janeiro 31, 2006

BR-3

Este post é histórico.

Estava eu muito feliz, lá no Camelódromo da Uruguaiana comprando uns brinquinhos de côco, uns colarzinhos de semente. Já passava das 19h e a maioria das barracas estava fechando. Acabei me perdendo em um dos labirínticos corredores de camelôs, na vã tentativa de pegar um atalho.

No estreito caminho entre algumas barracas de dvd, vi um negão gigante ocupando metade do corredor. Olhei (pra cima) rapidamente, e continuei caminhando. Achei o cara meio familiar, mas como estava falando no celular não dei maior importância. Desliguei o telefone. Olhei pra trás. O negão continuava lá. Parei. Franzi a testa. Opa.

Dei mais uns dois passos e parei de novo. Olhei pra trás de novo. Estranho. Voltei a caminhar. Dei mais três passos. Parei. Voltei pra trás. Será? Dei uma última olhadinha, mais de perto. Não era possível. O negão continuava lá, entretido na atividade ilícita do estímulo à pirataria. Cheguei mais perto. Parei.

Peraí.

Não, não pode ser.

Encostei na barraca, do lado do negão. Olhei bem dentro da cara dele. Ele não se deu conta da minha presença.
No fundo da minha alma, o coro começou a entoar:

"A gente corre, a gente corre, na BR-3, na BR-3 ..."

Será, meu Deus???

E Ele respondeu: "Podes crê, amizade!"

Comecei a ficar realmente tensa. Ele estava decidindo entre o "Senhor das Armas" ou "Jogos Mortais". Eu estava decidindo entre ficar com as mãos suando ou as pernas bambas. Ele percebeu. Olhou pra mim por cima dos óculos, com estranheza. Eu ri, feito um lhama. Ele sorriu de volta. Meu coração estufou. Alguém passou e o cumprimentou. Foi aí que eu ouvi a voz. Dele. Não, não era possível. Comecei a rir mais, nervosa. Fingi que estava procurando o novo dvd do Sorriso Maroto, pra disfarçar. Apesar da minha atitude discreta, deixei cair várias caixas no chão. Ele percebeu e ficou me olhando, curioso, talvez achando que eu fosse portadora de síndrome de down. Notei que ele se preparava para pagar pelos 12 dvds escolhidos. Reuní toda a coragem do meu arqueiro zen interior. Gaguejando, ridiculamente, perguntei:

- Vo-vo-cê-cê é... é.. você é o ...

Não terminei. Ele me interrompeu, tirou os óculos e olhou bem dentro da minha cara.

- Quem? O Júnior Baiano? Não, não sou eu não.

Riu e voltou sua atenção para a bunda da vendedora. Me senti um protozoário. Mas como sou cara de pau na mesma proporção da minha mongolice, resolvi me tacar do precipício

- Vem cá, você não é quem eu estou pensando que é, é?

E dei aquela piscadela marota, que só pessoas muito marotas sabem dar. E ele:

- Pois é, querida. Não é todo dia que a gente encontra um Tornado pela Uruguaiana. Qual é a sua graça?

Senti uma vertigem.

Era o Toni.

TORNADO.

Não, peraí. Vocês não estão entendendo. Caralho. Caralho. CARALHO!!!!!

(corta)

Antes de ser o "crioulo de plantão da Globo", como ele mesmo se auto-intitulou, Toni Tornado teve uma meteórica carreira como cantor, gravando dois discos que fizeram relativo sucesso.

O ano era 1970. Na noite do dia 17 de outubro, o prêmio de melhor canção do 5º Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo, foi para um cantor negro desconhecido, de quase dois metros de altura, com um imponente cabelão black power, que cantava e dançava com o estilo de James Brown. Toni Tornado havia sido o intérprete que Antônio Adolfo e Tibério Gaspar escolheram para transmitir a mensagem de "BR-3", uma espécie de valsa soul.

Usando botas pretas até o joelho, camisa cáqui desabotoada com o peito à mostra, onde um sol colorido pintado contrastava com a pele escura. a performance de Toni é lembrada até hoje. Bem básico.

Antônio Viana Gomes, nascido em São Paulo, veio para o Rio ainda criança, e sempre gostou de imitar cantores americanos, como Chubby Checker. Foi assim que, na juventude, começou a participar de programas de televisão. Na TV Rio, conheceu Carlos Imperial, que o contratou como segurança. Depois de uma temporada na Europa, Toni foi para os Estados Unidos, onde viveu vários meses na clandestinidade como lavador de carros, e retornou para o Brasil.

"BR-3" fazia uma crítica subliminar à ditadura, e havia sido rejeitada por Simonal e Tim Maia. Mas caiu como uma luva para Toni Tornado, engajado com o discurso do Black Power, que o fez se destacar como um possível líder negro. Passou a ser mal visto pelos militares, e seu caso com a atriz loira (na época, considerada bonita) Arlete Sales chocou a opinião pública.

Dias após a vitória no FIC, o colunista Ibrahim Sued, concorrente desclassificado do festival, articulou um embuste, sugerindo que "BR-3" não era somente a sigla de uma estrada mas, segundo o código dos viciados, uma veia do braço onde se injetava cocaína. Por detrás da invenção havia um lobby para favorecer um livro escrito pelo seu amigo, o general Jaime Graça, chamado "Tóxico", em cujas primeiras páginas sugeria que a música "BR-3" era um hino para os toxicômanos.

Tibério e Adolfo foram chamados para depor no SNI, e sua produtora musical foi fechada. Arlete começou a ter problemas na emissora por causa do escândalo. E Toni mal podia sair à rua, sendo alvo de insultos. Acabou preso várias vezes por causa de seu ativismo social em favor dos negros nos bailes da periferia. Em 72, foi "convidado" pela repressão a sair do país. Exilou-se no Uruguai, Angola, Egito e Europa, interrompendo sua carreira de cantor. Passado o tempo, tornou-se conhecido por seu trabalho na TV, sendo um dos poucos atores negros contratados pela Rede Globo.


(play >>)

Resolvi puxar papo. A conversa foi meio complicada inicialmente, porque ele estava muito ocupado olhando para as mulheres que passavam. Mas logo ele resolveu focar a atenção em mim, digo, no meu decote. Insisti. Me apresentei e fui logo falando sobre o meu mestrado, sobre a black music brasileira, e dizendo que ele era um dos personagens principais da minha pesquisa. Aí ele se interessou um pouco mais. Percebi isso porque ele começou a me cantar. Quando ele realmente percebeu que o trabalho era sério, me convidou para jantar. Em nome do conhecimento acadêmico, fingi surdez repentina, e persisti no assunto. O papo começou a fluir.

Ele segurou meu braço e fomos caminhando. Falávamos sobre sobre o tempo dos bailes, do movimento black, da ditadura. Pegamos uma rua escura. Temi pela minha integridade física. Ele não parava de falar. Eu me encontrava na zona nebulosa entre o fascínio completo e o pavor total.

Paramos em frente a um sobrado antigo. Ele fez sinal para que eu entrasse. Medo. Pensei em simular um AVC, mas ele não só era falante como também autoritário. E me fez entrar no local. Muito medo. Fui me escorando na parede do corredor e tive uma visão. Era Anne, vestida de anjo vingador, com uma expressão ameaçadora de desaprovação, barrando minha entrada com uma espada de fogo na mão. Toni continuava andando e falando. Me persignei e resolvi seguí-lo.

Com alívio, percebi que era apenas um estacionamento. Amplo, iluminado, movimentado. Soltei o ar que estava preso há uns 45 segundos. Ele pagou o estacionamento com uma nota de 50. Notei que, na carteira, só havia cédulas de 50. Fiquei emocionada. Realmente, a Globo é um bom lugar onde se trabalhar. Mesmo quando você não está exatamente trabalhando. Toni não parava de falar, contando aventuras incríveis, revelações bombásticas e fofocas de bastidores. De repente, interrompeu a narrativa, bruscamente e disse: "Vamos?"

Não entendi, e fiquei imóvel, olhando pra ele. Ele repetiu. "Vamos?". Como assim? "Eu te dou uma carona". Um frio percorreu minha espinha. Mas a palavra "carona" soou como doce música nos meus ouvidos. (para saber mais sobre "caronas" e "bolivianos", consultar o post do dia 11 de outubro de 2005).

A imagem de Anne surgiu sobre o meu ombro esquerdo. Desta vez, ela estava menor que meu brinco de côco, mas tinha auréola de neon e usava asinhas cor-de-rosa. Bem na hora em que ela gritou "NÃO!!!" dentro do meu ouvido, olhei para trás.

Azul-petróleo metálico, cabine dupla, rodas de liga e vidro fumê. Uma F1000 reluzia ali, parada, convidativa. O manobrista havia trazido o carro. Toni abriu a porta. Pude divisar o interior atapetado do veículo, bancos de couro, direção hidráulica, dvd e som estéreo.

Me joguei lá dentro.

Anne tentou puxar minha orelha, mas a espantei como a uma muriçoca. Ela se dissipou em uma nuvenzinha de estrelinhas e purpurina.

O trânsito não estava tranqüilo ali no final da rua da Alfândega. Toni teve dificuldade para dirigir, por conta dos inúmeros ambulantes e dos incontáveis perfumes falsificados da Boticário, vendidos em pratinhos de isopor. Disfarçadamente, liguei o gravador do celular.

Ele simplesmente conhecia todo mundo do Camelódromo. Tirei altas ondas com os camelôs. Afinal, eu era uma estrela. Ele cumprimentava a todos, "Hello, Lady", "Hi, Don". Puro Harlem. Eu, ele só chamava de "bem".

- E então, "bem", você tem namorado?
- Ahn??
- Ou você é casada?
- Err... E a sua mulher, cadê? (tentei bancar a espertalhona)
- E quem disse que eu sou casado? Mas estou querendo casar.


Medo.

Peguei imediatamente o celular, e liguei pra casa. Ele precisava saber que eu sou moça de família.

- Mãe, você não vai acreditar!!! Sabe quem eu conheci???
- Hum
- Toni Tornado, mãe!!! Acredita!???
- Quem?
- To-ni Tor-na-do! Caraca, surreal!!!
- Su o quê?
- Mãe, ele tá mandando um beijo pra vc!!!
- Luciana, quando você vier pra casa, traz dois maços de cigarro pra mim?
- Mãe, você ouviu???
- Ouvi, ouvi. Free Light, tá?
- Ah, tá.


Toni me contou a respeito dos problemas que enfrentou e ainda enfrenta com o pessoal do movimento negro. Considerado alienado, se ressente por não ser lembrado pelo que fez no passado, e pelo que teve que enfrentar. "Lu, eles não entendem quando eu digo que não sou do movimento negro. Porque eu sou um negro em movimento". Achei foda isso. Faltou pouco para ele terminar a faculdade de direito, lê muito e é um cara extramente inteligente. Só foi um pouco complicado explicar pra ele que não adiantava tentar me deixar NA FRENTE das barcas, após a obra na Praça XV que construiu uma passagem subterrânea para o trânsito. A obra foi realizada há uns dez anos atrás. Ele deu umas quatro voltas no mergulhão, e, na última, pegou a entrada errada, e teve que fazer o retorno no Aterro do Flamengo. Mas tudo bem. A conversa estava ótima mesmo, e acho que ele desistiu das cantadinhas infames, após ver minha cara de espanto quando ele disse ter 74 anos.

Me deu o número do telefone, e se mostrou disposto a colaborar com minha pesquisa. Eu realmente fiquei encantada. Ele é fabuloso. Até pensei em dar meu currículo pra ele. Sem trocadilhos. Mas também imaginei que ele talvez quisesse algo em troca. Com trocadilhos. Ou seja, eu teria que dar duas coisas pra ele. Dar uma coisa em troca de dar outra coisa. Ou o contrário. Sei lá.

Confesso e assumo que me senti atraída pelo Toni Tornado. Pelo caráter dele. E ele está cheio de caráter na carteira. Fiquei me imaginando na Ilha de Caras, celebrando a lua-de-mel. Após horas explicando pra minha mãe quem ele era, rememorando todas as últimas novelas, desde "O Beijo do Vampiro" até "Agosto", ela até gostou da idéia. Já de olho em uma futura pensão.

15 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Caraca, Luciana, depois do homem mancha, o toni tornado. Cara, esse seu post foi uma lição de história para mim. Além de ter rendido boas gargalhadas... Você, definitivamente, é uma figura!!!!

2:35 PM, janeiro 31, 2006  
Blogger Brena Braz said...

Figuraça! Fico no meu trabalho rindo sozinha com seus posts... passo mó aperto aqui nas horas que deveria fazer cara de séria! hahaha
Bjos, Brena

3:04 PM, janeiro 31, 2006  
Anonymous Anônimo said...

Quequéisso!!! Isso não pode ter acontecido, vc não existe. Ou vc não existe ou vc é A pessoa!

6:55 PM, janeiro 31, 2006  
Blogger Ana Boaventura said...

Lu, realmente o encontro foi SURREAL! Se não fosse com vc não seria com ninguém. E, menina, o dom da narrativa, é, definitivamente SEU!
Beijos!!!

9:36 AM, fevereiro 01, 2006  
Blogger lipeburger said...

caraleo alado...passei a manhã toda lendo esse post. Mas valeu a pena! Luciana, darling, vc é tudo na minha existência!!! adoro seus textos cara, vc deve ser muito divertida pessoalmente...queria muito te conhecer sabia! mas vc é muito ocupada, né?

beijos

10:32 AM, fevereiro 01, 2006  
Anonymous Anônimo said...

Isso aí: traça o coroa. Mata logo o coroa e fica com a herança. Luciana, a viúva de Toni Tornado :)
A propósito: o comentário anônimo lá em cima é meu. Sei lá por que cargas d'água apertei o botão errado. Bjs, Mara

3:42 PM, fevereiro 01, 2006  
Blogger Luiz Roberto Lins Almeida said...

Putz, mto legal, mas sempre achei que deve ser difícil conversar com alguém que admiramos de longe... sei lá, talvez eu seja mais tímido.
mas a narrativa tá ótima.

12:26 AM, fevereiro 02, 2006  
Anonymous Anônimo said...

Caraca Lulu, vc tem uma imagem muito errada da minha pessoa. Eu sou um doce, jamais faria essas coisas. Pra falar a verdade me senti a própria diabinha de desenho animado pulando no seu ombro e dando leves fisgadinhas com meu tridente.

1:48 AM, fevereiro 02, 2006  
Anonymous Anônimo said...

Em tempo: ainda vai ter gente achando que é caô! Se bem me lembro, nesse dia quando atendi o cel, os curiosos que me rodeavam ao me ouvirem murmurar algo sobre um encontro surreal, lançaram mão das apostas e até "Caraca, Lulu encontrou com o Netinho" eu ouvi. Admito que na hora achei graça, mas depois, quando vislumbrei a cena, temi pela sua integridade física, caso ele realmente tivesse acontecido.

1:51 AM, fevereiro 02, 2006  
Anonymous Anônimo said...

ué, você apagou meu comentário, mané?

4:28 PM, fevereiro 02, 2006  
Blogger Joao Guandalini said...

Guria, vc é punk mesmo! Eu ia curtir trocar uma idéia com o Toni Tornado... Caramba, esse cara está com 74 anos, que vida maluca, um cara de 74 anos de F-1000 azul metálica e notas de 50 na carteira, quero ser ele quando crescer, essa vida de engenheiro meia boca está cansando, hehehe Muito bom o seu post, dei muita risada, super beijo, se cuida!

6:16 PM, fevereiro 02, 2006  
Anonymous Anônimo said...

Puxa, mina, na próxima viagem, por favor, vê se dá para se encontrar com Torquato Netto. Entre os mortos e feridos, mas principalmente da ala dos malditos, eis um dos esquecidos que precisam dar uma força a fim de que reviva, com mta vida e arte. Nâo! Nao acho que vale a pena "jogar o boné" diante do desencontro da GLOBARBARIZAÇÃO...Entende-me? Parabéns, baby! Gostei de ti!
Brad Pitt (Latino americano, mas adimirador dos malditos)

6:00 PM, fevereiro 03, 2006  
Blogger Cristina Boeckel said...

Definitivamente, existem coisas que só acontecem com você. O Toni Tornado deve ser uma cara com um mundo de histórias para contar. Mas, afinal de contas, ele tem história porque viveu tempo suficiente para ser seu avô. Ah! Eu não fui para a Bahia. Quem me dera... Vou trabalhar no Carnaval...
Tô com saudade.
Beijocas.

11:10 PM, fevereiro 03, 2006  
Anonymous Anônimo said...

quero post novo!

beijo

7:06 PM, fevereiro 04, 2006  
Blogger Marcelo said...

Esse toni tornado era (ou é) meu vizinho! Ele e o Sgt. Pincel! rs. Já esbarrei váaarias vezes com os dois andando pela ruas daqui, mas faz um bom tempo que nao vejo. Também, nao fico mais andando pelas ruas...rs

Eu tenho especial admiracao por todos que fizeram o comeco da black-music aqui no brasil, porque era um negocio á primeira vista copiado dos EUA, mas na prática tinha um engajamento, sem perder a graca e a diversao.

Também sou fâ dele. Mas definivamente, nao daria para ele nao. Afinal, das poucas certezas que tenho é que sou hetero :-P

1:06 AM, fevereiro 06, 2006  

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