quarta-feira, janeiro 10, 2007

Promessa de Ano Novo

Uma das minhas promessas de ano-novo é manter este blog sempre atualizado. A outra foi tentar, só tentar, deixar de ser mané.

- Lulu, não dá, a gente não aprende! Que merda!
Não dei um pio. Cansada, o pé escorregando dentro da sandália por causa da água da chuva, deixei Anne reclamar e tentei abstrair. Quase 5h da manhã, metade da minha calça branca havia adquirido uma outra coloração, que variava entre o marrom argila e o preto asfalto, sem ter dado nenhum beijo na boca, e ? pior! ? sem nenhum efeito do álcool na mente. Nenhum artifício para tornar aquela madrugada do primeiro dia de 2007 um pouco mais engraçadinha. Suspirei.

Se isso for um indício de como será o resto do ano, tira Saddam daí de cima que eu tô me candidatando.

Estava tudo ok, passagem do metrô na mão, nada de muvuca, pontualidade, blusinha azul comprada na C&A pra passar o ano novo com tranqüilidade e nenhum ônibus queimado pelo caminho, lá fomos nós, com escala em Copacabana, para Ipanema, onde eu e minhas coleguinhas iríamos participar do super show super legal do super grupo super multi-étnico Black Eyed Peas. Guerreiras como sempre.

A escala em Copa seria na casa de Vilter, amigo de Anne (meu que não é!), onde confraternizaríamos um pouco com seus familiares e confrades, comeríamos uns cocrete e começaríamos a preparar a nossa deliciosa mistura alquímica, daquela famosa bebida feita de coca com aquela outra famosa bebida dos piratas, cujo nome é baseado naquela famosa ilha comunista caribenha. Chegamos no prédio e o elevador não funcionou. Mau presságio. Mas não demos importância. Subimos e fomos recepcionadas com todo o carinho e afeto.Vilter nos avisou que só ?marcaria um dez? com a parentada, e logo estaria liberado para a farra. Dois pocinhos de ingenuidade, eu e Anne acreditamos.

Família reunida, cervejinhas, salgadinhos, musiquinhas, conversinhas, o tempo passou. Eu e Anne num cantinho, meio deslocadas, meio sem graça, meio sem assunto. Minha bolsa (e o rum, ainda intacto) estavam seguramente guardados no quartinho de empregada, na área de serviço. 22h00. ?Bora, Anne??, cutuquei. Vilter, lá dentro, jogava vídeo-game com o afilhado de 7 anos. 22h30. Anne perguntou por Vilter. ?Ele já vem?, responderam. De acordo com a semiótica das cores, a minha blusa azul da C&A com decote canoa super in pregava tranqüilidade. 22h45. Vilter surge na sala, com uma cara séria e enigmática. Anne se levanta e comunica a todos que estávamos de partida. Logo ouvimos um pranto infantil dorido. O afilhado veio correndo lá de dentro e se atirou aos pés de Vilter, o padrinho malvado, chorando, pedindo para que ficasse. Imediatamente, ouvimos um côro: ?Vilter, você vai sair????, e toda a família nos olhou, furiosa. Senti o climão em um crescendo vertiginoso.

Eu e Anne tentamos ir nos despedindo, distribuindo beijinhos fast-food pelos presentes, enquanto Vilter tentaria desembolar o pepino. Mas ? pasmem! ? Vilter continuava em silêncio, enquanto era cravejado de perguntas cobratórias sobre sua atitude herege de passar o reveillón longe da família. O tempo passava e os The Black Eyed Peas nos esperavam. Puxei Anne rumo à cozinha, para sairmos, à francesa. Mas perceberam, e fomos seguidas pelos familiares irados através do diminuto corredor. De repente, ficou todo mundo embolado, a passagem obstruída, pessoas gritando, crianças chorando, e eu também, enquanto tentava explicar que não iríamos pegar nenhum ônibus inflamável, e, like usual, Anne rindo.

Mas o climão já estava instaurado. A cozinha havia sido invadida por todos os familiares, que nos olhavam, furiosos. Comecei a sentir uma pontada na têmpora. Olhei pra Anne, cuja risada insistente podia ser interpretada como sinal de um AVC eminente. Tentei ser prática: ?Vilter, se vc não quiser, não precisa ir com a gente, não tem o menor problema?, falei, entredentes, enfatizando o ?menor? e fingindo ternura. Vilter não respondeu, enquanto tentava arrastar a perna na qual o menino ainda estava agarrado. Todo mundo falava ao mesmo tempo. Anne fez um sinal estratégico para mim com a sombrancelha esquerda, e eu entendi: do local de onde estávamos, enquanto eu distraía os presentes com algum truque malabarístico, ela daria dois saltos mortais até a porta, abriria a fechadura com sua espada de neón cor de rosa, me puxaria pelas tranças e, assim, nos jogaríamos para fora do apartamento rumo à liberdade.

Mas ela sabia que eu não sairia de lá sem o rum. Nunca.

Com foco e paixão, utilizando minha mira raio-laser, localizei a garrafa de rum, oculta em alguns sacos plásticos, em cima da pia.Vilter saiu da inércia e começou a tentar se explicar. Me questionei interiormente sobre como a garrafa foi parar em cima da pia e estiquei o braço para pegá-la. Triunfante, achei que ninguém estava prestando atenção. Ledo engano. Neste exato momento, uma mão de aço interrompe meu movimento friamente calculado, e toma a garrafa de mim. Era a mãe de Vilter. Diálogo:

- O que é isso aqui???
- ...
- Rum?????
- ...
- Ah, não!!!
- ...
- Vocês não vão sair daqui com essa garrafa de rum pra beber na rua não!!!
- ...


Pronto. Além de destruidoras da união familiar, cachaceiras. Perfeito.

Eu queimava por dentro. Agora entendi o que Wynona Rider passou em Salém. A chama do constrangimento é pior do que o fogo da Santa Inquisição.


23h45. Olho pro céu e só vejo nuvens. A chuva não ia parar nunca mais na vida toda. Anne, alguns passos na minha frente corria, segurando a garrafa de rum, com um copinho de plástico na mão, xingando Deus. Eu, mais atrás, já desistindo de andar rápido, com um litro de Coca-cola na mão, todo sacudido. Começamos a perceber que trilhar a pé o caminho que liga Copacabana a Ipanema não havia sido boa idéia. Não sei porque não perguntamos a ninguém, a nenhum local, qual era a exata distância. Simplesmente, dentro de nossos cérebros insanos, achamos que dava para ir a pé numa boa. E fomos. E nos fudemos. Depois de toda a balbúrdia, Vilter ficou com pena do afilhado e acabou não indo ao show com a gente. Bom menino. E nossa única companhia naquela noite chuvosa de 31 de dezembro era o querido amigo pirata.

- Anne, vamos pegar um táxi? (implorando)
- Não!! (veemente)
- Porra, Anne, deixa de ser zura!
- Eu não sou zura, eu sou dura!


Poesia pura. Enquanto tentávamos conciliar o ato de beber com o de correr deu meia-noite, os fogos pipocaram, eu e Anne nos abraçamos rapidamente e continuamos na corrida contra o tempo. Disseram que o show começaria pontualmente 00h02 e, novamente, acreditamos. 15 minutos de um fantástico show pirotécnico no céu do reveillón mais famoso do Brasil e eu olhando pro chão, tentando não pisar em poça alguma.

Chegamos em Ipanema por volta de 00h40, e nem sombra do grupo de hiphop multiétnico no palco. Quarenta milhões de pessoas nos recepcionaram, proporcionando um clima super gostoso de bastante amizade e calor humano. Nos instalamos em uma esquina, na calçada, próxima ao palco, em frente à bicicleta de um vendedor de cerveja. Nosso camarote vip. Não sei se, por azar ou sorte, era debaixo de um prédio de janelões enormes onde, no primeiro andar, havia uma festa louca, provavelmente do neto do Chateaubriand. Contrataram a bateria da Grande Rio para animar os convidados, A vantagem é que podíamos alternar entre samba e hiphop, e foi super legal ser atropelada por mulatas, passistas, bumbos, tambores e agogôs que escolheram justamente o meu lado para passar.

A chuva proporcionou a formação no solo de uma laminha toda especial, típica de Ipanema, que parecia farinha láctea preta. Dali do nosso camarote pudemos ter o prazer de presenciar vários tombos de playboys e gringos bêbados. Em especial, um casal, loirinho, todo de branquinho. Caíram um por cima do outro, foi ótimo. Quem chafurda unido permanece unido. Muitas pessoas tropeçavam também na nossa bicicleta, pois teimavam em passar onde não deviam. Como, por exemplo, um playboy em coma alcólico sendo carregado pelos amigos também bêbados. Eu até tentei avisar, em vão. Todo mundo se embolou em cima da bicicleta, e caíram lá do outro lado, lindo, lindo. O do coma até acordou e, descalço como estava (não sei que moda é essa) pisou em cheio em um caco de vidro. Sangue pra todo o lado, ele urrava de dor, e logo depois começou a gritar que queria fazer xixi. A namorada, solícita, abaixou as calças dele e até segurou o pintinho, olha que amor. Depois ele vomitou. Falei com Anne: ?Vamos ficar por aqui mesmo, pra ver! Vai que ele faz cocô?? Super show.

Agora, o amor. Recebi uma ótima cantada de um menino. Cabelo descolorido, camisa do flamengo e, estourando, uns 15 anos. Primeira abordagem: ?Pô, gata. Nunca te vi, mas sempre te amei?. Segunda abordagem: ?Deixa eu provar do mel dos teus lábios?? Super gostoso. Di, irmão de Vilter, que havia aderido à insubordinação familiar, passou um tempinho conosco no show, e depois sumiu, voltou naquele momento, já no grau, com a camisa do avesso. Ele disse que o menino também comentou algo do tipo ?como é doce o beijo quando vem da sua boca?, mas eu não ouvi. Fiquei lisonjeada.

No final, lembrei que minha bolsa e TODO O MEU DINHEIRO havia ficado na casa de Vilter, na longínqua Copacabana, o que nos obrigou a refazer todo o calvário a pé. Só que, desta vez, muito mais cansadas e com muito mais chuva.


Feliz ano novo pra vocês também.


* Alguns nomes foram substituídos para preservar a sem-noçãozice de algumas pessoas.

Cagâncias

Jurema é uma amiga minha que anda sofrendo de problemas emocionais e intestinais.

Lulu diz
Menina, come manga. Manga é ótimo.

Jurema diz
Será mesmo?

Lulu diz
Garanto. Come no café-da-manhã. O intestino funciona que é uma beleza.

Jurema diz
Vou comer.

Lulu diz
Melhor que Actívia.

Jurema diz
Sabe que quando você escreve que ?cagou quilos?, eu sempre paro uns 5 segundos achando que é literal?

Lulu diz
É só uma metáfora, amiga.

Jurema diz
E sabe que uma amiga minha, quando viu o menino por quem ela era apaixonada entrar no msn, ela ficou tão nervosa que se cagou todinha?

Lulu diz
Jura? Melhor que manga??

Jurema diz
Pois é. Pura emoção. Teve que jogar a calcinha fora.

Lulu diz
Que delícia.

Jurema diz
To pensando aqui. Como eu ando com uns probleminhas de prisão de ventre, acho que vou pedir para Silvan (meu objeto de desejo) entrar no msn também.



Jurema é ótima. :o)

Porto da Barra

O Porto da Barra é uma das praias mais pitorescas do mundo. Talvez só perca para a praia de Icaraí e adjacências, onde a grande bizarrice reside no fato de que não tem mar, e sim um grande lamaçal, onde as pessoas insistem em mergulhar. Aliás, esquisito mesmo é que elas acreditam que o líquido no qual estão chafurdando está liberado para banho.

Mas o Porto é um balneário limpo, águas plácidas e mornas, que servem de manjedoura para um pôr do sol arrebatador. Um cenário de tranqüilidade e paz que se opõe diametralmente à barbárie de sem-noçãozices que assisto toda vez que resolvo pôr meus pés em suas areias escaldantes. Em meio a milhares de turistas, ?periguetes? e ?putões? se misturam às crianças mais barulhentas de Salvador, vira-latas, bolas de futebol desgovernadas, vendedores de queijo coalho e de bronzeadores (suspeitos na mesma medida), mendigos, alguns ótimos negões (em sua maioria, capoeiristas) e várias pessoas que se amarram num sambalelê, como eu. Adoro. Abriu o sol, saio correndo de casa e me jogo lá, toda refestelada na minha canga linda, de motivos indianos. Canga esta que, invariavelmente, está sempre cheia de flocos de areia, jogados por um ou outro pé mais incauto.

Tava eu lá, deitadinha e tostante ao sol, enquanto ouvia minha musiquinha no meu radin de pilha. Alguém me interrompe. Era um negão. Bem, como todos sabem dos meus pobrema nas vista, eu achei que fosse um negão. Eu também não tenho lá muito senso de proporção, e ignorei o fato de que eu estava deitada, com o sol batendo em cheio na cara, e ele de pé, contra a luz. Enfim, negão. Óbvio. Fiquei contente. Óculos escuros, sunga vermelha, brilhando. Não, não eram os óculos ou a sunga vermelha que brilhavam. Era ele. Puro óleo de bronzear. Parecia que tinha se jogado em uma tina de óleo de bronzear. Inclusive, pude divisar meu próprio rosto refletido em seu tórax reluzente e bem torneado. Saradíssimo, me interessei e dei um peteleco no fone de ouvido, desobstruindo meu canal auditivo cujo funcionamento, também de conhecimento geral, é constantemente afetado por uma surdez galopante que teima em se manifestar nas piores horas. Ele disse algo que eu não compreendi, deixou a carteira ao meu lado e, sem esperar resposta, correu para o mar.

Alguns minutos depois, vejo o moçoilo retornando da água, com mais bossa que Helô Pinheiro. Brilhando. Naquele momento, seguindo as orientações de minha companheira de trabalho, dona Anne, tentei compará-lo com algum passante, para constatar a estatura. E percebi que ele, efetivamente, não era um negão. Tampouco nego médio. Sua altura parecia regular com a de um menino de uns 11 anos que jogava frescobol próximo à água, podendo ser enquadrado na categoria neguinho. Orei para Jeová. O pior estava por vir.

Ele perguntou se poderia se sentar ao meu lado. Pelo que me consta, a praia ainda é pública, mas nem tive tempo de responder, pois ele, acachapantemente, se sentou. Na minha canga.

Alguém pode procurar o verbete ?propriedade privada? no Google, por favor?

Começou a falar alguma coisa, que eu não prestei muita atenção, pois estava ocupada tentando puxar o pedaço da MINHA CANGA que estava debaixo de suas nádegas besuntadas. Foi quando ele disse que era cantor de um grupo de pagode. Opa. Perguntei onde ele tocava. Ele disse que ia tocar em uma das praças do Pelourinho, domingo à tarde. E arrematou, dizendo que me colocaria para dentro, tipo convidado VIP de evento patrocinado por celular. Pelo que me consta, a grande maioria dos shows que ocupam os palcos das praças do conjunto arquitetônico do Pelourinho, tombado pelo patrimônio histórico brasileiro, são gratuitos. Especialmente, domingo à tarde.

Percebendo que eu havia pressentido o caô, rapidamente mudou de assunto e de tom, decaindo para uma cantada barata ao começar a elogiar meu cabelo, que, naquele momento, estava completamente afro-étnico-black-power. Eu sei que eu estava lindíssima, mas não era motivo para pedir meu telefone. Eu quis chorar. Inventei um namorado fictício, mas ele não se deu por vencido. E, lambendo os beiços, soltou: ?Imagina esse cabelão todo na minha cama???. P.A.N.I.C. Compreendi que era chegada a hora de me retirar. Horário de pico faz mal pra pele.

Por uma pernada do destino, meses depois, no Porto, eis que reencontro o ruela. Quando o vi ao longe, enfiei a cabeça na areia. Não adiantou. Dessa vez a sunga era amarela. Um pouco gasta, um pouco velha. Já tinha dado de si, de mi, de fá e de sol há muito tempo. Inclusive, e imagino que fosse proposital, o cós da sunga estava tão abaixo da linha do bom tom que deixava entrever alguns pêlos pubianos do mancebo. Puro charme.

Mais bezuntado do que nunca, imaginei que, por conta de eventuais dificuldades financeiras, ele estivesse usando óleo de soja (ou de dendê) no lugar de bronzeador. Um agrádavel odor de peixe frito se esgueirou por minhas narinas. Enquanto eu reclamava comigo mesma por minha falta de habilidade para ser grosseira, ele se sentou. Ao meu lado. Ninjamente, consegui tirar minha canga do caminho. A primeira coisa que ele perguntou foi se eu ainda estava namorando. ?Noiva?. Mudou o rumo. O assunto agora era trabalho. Disse que não estava mais tocando. Perguntei se ele trabalhava. ?De vez em quando, mas, no momento, estou só malhando.? Bom emprego. Decidi não falar mais nada, e comecei a arrumar minhas coisas para levantar acampamento. Foi quando ele viu algum conhecido, levantou, pediu pra eu segurar seus óculos de R$ 4,50 e não voltou mais.

Feliz com a privacidade reconquistada, joguei os óculos na areia, bem longe, e de novo me estirei languidamente em minha canga de motivos indianos. O sol brilhava com força, e pensei na possibilidade de trocar os óculos dele por um picolé de mangaba. Ele voltou. Caralho. Enfiei o picolé de mangaba no ouvido, e recomecei a rearrumar minhas coisas para relevantar o acampamento. Mesmo assim, ele se sentou, e começou a falar de dinheiro, viagens e malhação. E aí veio a pérola.

- Ah, tá sabendo que eu vou fazer um filme?
- É mesmo?
- É. Pornô.
- .

Olhei para o sol, na esperança de que os raios UVA e UVB me cegassem e me ensurdecessem. Não rolou. Dada a notícia, ele ficou um tempo em silêncio, olhando para o nada, com cara de quem havia acabado de chupar um cajá. Refletindo, talvez. Joguei tudo dentro da bolsa, incluindo o palito do picolé e algumas pás de areia, apressadamente. Ele tentou continuar, dizendo que o filme ia ser na Suíça, mas eu cortei. Triunfantemente grossa. Me despedi, dizendo ?olha ali meu noivo!?, e fui sartando. Ele acreditou, mas não desistiu. Disse que ia me ligar, sendo que eu nunca dei meu telefone a ele. Respondi ?Liga mesmo!?, para não contrariar.

Ainda deu tempo de vê-lo indo embora, cumprimentando metade da praia, provavelmente, pessoas que ele não conhecia. Foi uma imagem singular ver, emoldurado pelo amarelo da sunga meio frouxa, aquele exótico cofrinho oleoso, brilhando sob sol de Salvador.

Protético

Uma vez viajamos eu, mamãe e vovó para Caldas Novas (GO). Eu ainda era criança, e, portanto, deveria prestar obediência e fui, arrastada. Excursão de aposentados. Super legal. Eu, com uns 17 anos, me diverti horrores, como vocês podem imaginar. De 15 em 15 minutos tinha um bingo no ônibus, e os prêmios variavam de uma régua de plástico a um calendário de papelão. A viagem foi um saco, o maior atrativo do hotel era uma piscina de águas quentes, e a velharia boiando naquele caldo me fez ter pavor de canja até hoje.

Para chegar em Caldas Novas, pararíamos em Ribeirão Preto (SP ?) e em Araxá (MG). O hotel de Ribeirão era lindo, ótimo quarto, o café-da-manhã dos deuses. Dormimos duas noites lá. Na segunda noite, como sempre acontece em viagens com minha doce avózinha, ela sempre deixa para arrumar as malas em cima da hora. Como iríamos sair do hotel de manhã, o ?em cima da hora? significa ?de madrugada?. Para passar apenas duas noites, ela simplesmente retirou todas as tranqueiras de dentro da mala, e arrumou o quarto como se fosse passar o resto da vida lá. Eu, que já estava com tudo pronto, fui dormir mais cedo. Por volta de umas 3h, 4h da manhã, vovó me acorda, gargalhando. Irritada, ?O que é, vó???. Ela não conseguia falar de tanto rir. Mamãe, sentada na outra cama, parecia rir e chorar ao mesmo tempo. Cocei o olho, tirando as remelas. Olhei bem. E vi tudo preto. Literalmente, um buraco negro. A pressão baixou. Vovó foi comer amendoim e quebrou um dente da dentadura.

(nesta hora, parei de escrever e fiquei lembrando de tudo. O momento foi indescritível)

Não sei se foi sorte ou azar, o dente quebrado era um mais lateral, e não um frenteiro. Imagino que, se fosse o da frente, a tragédia seria total. Um dente quebrado do ladinho dava pra disfarçar, desde que não se sorrisse muito. Mas, sei lá porquê, talvez pela sutileza do buraquinho recém-aberto ali no cantinho, tudo ficou muito mais cômico.

Claro, não pra mim. Naquela época, ainda não fazia parte do meu caráter rir da desgraça. Eu era uma adolescente estresssada. Levantei da cama num pulo. Vovó não parava de rir, apontando para mamãe com o dente quebrado, culpando-a por ter oferecido o amendoim maldito. Mamãe, agora, parecia estar mais rindo do que chorando. O quarto estava uma zona, porque todo mundo desistiu de arrumar as malas. Tive uma idéia. Mandei mamãe procurar na bolsa, e fui telefonar para a recepção.

- Vocês têm super bonder aí?
- Super bonder? É marca de camisinha?

Mamãe não achou nenhuma cola na bagagem. O ônibus ia sair umas 6h, 7h, e, como a gente é pobre, não perderíamos por nada aquele café-da-manhã com cara de buffet de festa de 15 anos. Descemos. Não sei porque, mas, naquela manhã, vovó estava excessivamente simpática. Toda sorrisos. ?Vô, pára de rir!?. Cumprimentou o porteiro, a camareira, o ascensorista. Mamãe dava uns cutucões, para ver se ela se mancava. Encontramos todo mundo da excursão. Vovó, simpatia pura. Eu, um balde de constrangimento. Mamãe foi perguntar ao gerente se ele tinha algum vidrinho de cola dando sopa no hotel. Vovó, nem aí, batendo papo e sorrindo pra Deus e o mundo, só na buraqueira. O gerente, percebendo o nosso sofrimento, se solidarizou, e foi conosco até a mercearia que tinha ao lado do hotel. Fechada. Acordamos o dono da mercearia, que abriu mais cedo. Mas não tinha super bonder. Só sei que o gerente acionou um boy do próprio hotel, que foi de moto até o posto de gasolina mais próximo, comprar a porra da cola. As duas subiram correndo para o quarto, tomar as providências. A excursão atrasou uns 30 minutos, mas, graças a Nossa Senhora que Desata os Nós, deu tudo certo. A dentadura ficou novinha em folha, e vovó nem reclamou dos dez reais pagos na cola, mais a taxa de entrega.